Não precisamos de reply guys

O reply guy é um fenômeno identificado desde 2012 (pelo menos), e que vem se agravando, especialmente quando dirigido a mulheres ou a pessoas que compartilham experiências de discriminação ou de preconceito.

Você já percebeu, nas redes sociais, o fenômeno do personagem que todos os dias responde a posts alheios das mesmas pessoas, sendo que elas não fazem o mesmo com os posts desse personagem?

Sim, é comum, e pode ser normal e agradável - redes sociais nos conectam! Mas…

Estátua de um menino sátiro, vestindo uma máscara de teatro muito maior que ele, que aqui, representa o sátiro Silenus. Na escultura de mármore (59,5 cm), o pequeno beb6e passa a mão, em atitude de interrupção, pela boca da máscara com longas barbas.

…Mas em algum momento você notou alguém que tinha esse hábito, acompanhado de uma atitude de quem sabe mais do que as pessoas ao redor, que se permite tratar com familiaridade imaginária a pessoa a quem se dirige, e que apresenta seus questionamentos em uma forma que parece indicar que a pessoa que postou a mensagem original está errada, em débito, ou não disse tudo que deveria ser dito?

A primeira caracterização dos reply guys foi publicada em 2018, e já classificava 9 tipos distintos.

As frases a seguir são comuns no discurso dos reply guys, mas passam longe de esgotá-lo: “Você verificou essa fonte?”, “Com aquele comportamento ela estava pedindo por isso”, “Eu não vi nenhuma discriminação na fala dele”, “Pare de problematizar”, “Achei no Google um artigo que diz outra coisa”, “Eu não estava sabendo que _____”, “A palavra certa pro que você disse é ______”, “Deixa eu te explicar a piada que você acaba de contar”, “Na verdade a intenção dele foi ______”, “Outra pessoa não se ofendeu quando eu disse isso a ela”, “A piada que você acaba de contar não faz sentido lógico”, “Não foi isso que ele quis dizer”, “Nem todo ______ é assim”.

Temos reply guys de vários escopos: os de nomenclatura técnica, os juízes de graça de piadas, os especialistas de google e de wikipédia, os de pureza ideológica para assuntos tecnológicos, os mansplainers, os gatekeepers, os obsessores, e muito mais.

A probabilidade de você ser um reply guy é bastante reduzida se o que você faz é responder com frequência a pessoas que também respondem bastante a posts originais seus – ou se você publica mais posts originais do que reações aos posts alheios.

O que é um reply guy?

Antes de apresentar uma definição de Reply Guy, vamos a uma ressalva, que constou no glossário da Later sobre esse termo, e que contextualiza mas não reduz a seriedade do fenômeno em si:

O termo “reply guy” é frequentemente usado em um contexto negativo ou de zombaria, destacando a atuação de indivíduos que se envolvem nesse comportamento repetitivo e de busca de atenção. É importante observar que nem todos os usuários que respondem ou comentam são reply guys, pois em regra há interações significativas e respeitosas. No entanto, o termo é usado para descrever aqueles que ultrapassam os níveis normais de envolvimento e apresentam comportamento persistente, indesejado ou intrusivo.

Ou seja: como muitas coisas na vida, é uma questão de dosagem.

Agora, adotando as linhas gerais do glossário da Later, vamos a uma definição de reply guy:

“Reply guy” é um termo usado para descrever um tipo específico de usuário de mídia social que responde de forma consistente e excessiva às postagens de outras pessoas. Esses respondedores são frequentemente caracterizados por sua tendência a se inserir em conversas ou tópicos, mesmo quando sua participação não é relacionada ao tópico que foi postado.

Sobre o segundo destaque acima, na minha experiência individual, a sensação é de que os reply guys acham:

  • que estão falando especificamente sobre o tópico que foi postado, de uma forma legítima e bem-vinda pelos demais
  • que todas as vezes em que fazem isso, estão contribuindo com o autor e com o tema (para expandi-lo, ~corrigi-lo, etc.).
  • que eles mesmos, ou as pessoas que eles escolherem, são os juízes da oportunidade e da conveniência do que eles escrevem em resposta ou reação aos posts alheios.

Prosseguindo com a definição do glossário da Later:

Os reply guys podem responder repetidamente a postagens, com comentários irrelevantes ou excessivos, frequentemente marcando o autor original e tentando prolongar a conversa ou às vezes ganhar reconhecimento.

Eles geralmente buscam atenção, validação ou engajamento da pessoa a quem estão respondendo, tipicamente de maneira persistente ou intrusiva.

A palavra-chave principal desse trecho é o repetidamente. Esses tipos de comportamento, quando isolados ou esparsos, não caracterizam ninguém como reply guy. Mas quando acontecem todos os dias com respostas às mesmas pessoas, ou a pessoas que compartilham entre si alguma característica, são sintomáticos.

E eu acrescentaria um ponto ao destaque do segundo parágrafo: às vezes a atenção que eles querem parece ser não apenas do autor original mas especialmente de outros seguidores, para colocá-los contra o autor original a quem estão respondendo, ou para de alguma forma associar a si mesmos a reação ao conteúdo original.

Como evitar ser um reply guy?

Partindo da definição da Later, eu diria que o primeiro passo importante é verificar se a maior parte dos seus posts é na sua própria timeline ou é em resposta a outras pessoas. Se for em resposta a outras pessoas, vale olhar se é sempre dirigido às mesmas pessoas, e se elas também respondem aos seus posts (quando os seus não forem uma resposta a elas, claro).

Se a maior parte dos seus posts é respondendo a outras pessoas, e essas pessoas não respondem diariamente a posts originais seus, há aqui uma oportunidade para reflexão!

Um homem de meia idade dizendo 'Na verdade...'

Evitar ser um reply guy não significa se calar nas redes sociais, mas sim compartilhar as suas opiniões como posts originais seus, e não tanto em resposta ou reação aos posts de outros. Em especial, evitar desenvolver o hábito de cotidianamente acrescentar respostas aos posts das mesmas pessoas, ou de pessoas com características em comum entre elas.

E nessa análise não cabe reducionismo tecnológico. Se os seus posts forem motivados pela manifestação alheia e fizerem menção a ela de forma direta ou facilmente identificável pelo público em geral (citações, links, trechos, etc. – não é o caso dos subtoots ou subtweets crípticos e feitos sem intenção de serem vistos por alguém específico, por exemplo), cabem na análise mesmo se não forem feitos pressionando o botão de responder a ela ou de citar o conteúdo dela.

As redes sociais nos iludem fazendo parecer que temos intimidade com as pessoas que seguimos por meio delas.

Penso que o aspecto principal a ser levado em conta é que as redes sociais fazem parecer que temos intimidade com as pessoas que seguimos por meio delas, porque elas compartilham publicamente suas ideias, suas histórias ou mesmo as imagens dos seus corpos, e sentimos que essa conexão é pessoal e bidirecional.

Mas geralmente ela não é, e os posts públicos alheios não devem ser entendidos como um convite para retribuir, especialmente se essa retribuição for na forma de um hábito de “complementar” seus posts com tentativas de correções, ampliações, explicações, comentário editorial, solicitações de outros conteúdos, comparações com posicionamentos alheios, negações das vontades que essas pessoas expressam, etc.

Como reagir a um reply guy?

Dar feedback franco geralmente é o básico, ainda mais se for alguém genuinamente próximo.

Porém, nesse caso específico, não espere eficácia dessa medida. Minha experiência pessoal é de que o feedback direto adianta pouco com as pessoas que reúnem as características desse perfil: elas se sentem injustiçadas, pois acreditam estar contribuindo e retribuindo. O que eu tenho visto ao meu redor é que o feedback multiplica o comportamento e o espalha ainda mais.

Em muitos casos pode valer a pena ir direto para a segunda medida, que geralmente tem o custo mais baixo em termos de drama e de preservação da saúde mental da vítima dos contatos insistentes: usar os recursos da plataforma on-line para silenciar ou ignorar o reply guy. Quando a plataforma oferece gradação, é necessário ir direto ao pacote completo: ignorar posts, respostas e reações.

E se a sua conta tem muitos seguidores, ou se você costuma repostar o conteúdo de pessoas variadas, é possível que a melhor alternativa seja bloquear (ou um soft-block, se a plataforma permitir), de modo a poupar das respostas também os seus seguidores e as pessoas que você reposta.

Outras reações possíveis, como tentar denunciar (de qual violação?), retribuir, etc. podem contribuir para um ambiente ainda mais tóxico, sem reduzir o problema original.

Tem um aspecto de gênero nessa história?

Para o dictionary.com, a definição atualizada de reply guy é:

Reply guy é um termo para um homem que frequentemente comenta tweets ou outras postagens em mídias sociais de maneira irritante, condescendente, direta ou não solicitada - especialmente postagens de mulheres. Também pode se referir a uma pessoa que responde com frequência e zelo a postagens de pessoas famosas no Twitter.

O dictionary.com, ao apresentar a etimologia dessa gíria contemporânea, identifica raízes em 2012, e a princípio elas vêm desassociadas de questões de gênero – até 2015, reply guys seriam, simplesmente, pessoas que respondem imediata e desagradávelmente a postagens on-line, especialmente se dirigindo a pessoas famosas – “como se eles não tivessem nada melhor para fazer a não ser esperar para opinar sobre um assunto com sua opinião”, diz o site.

Mas já a partir de 2018, passou a ser crescente a associação do termo a questões que tem sido vistas como toxicidade masculina: mansplaining, tendência a menosprezar posicionamentos femininos, ou a flertar presunçosamente, por exemplo.

Na etimologia publicada, vemos que uma primeira taxonomia dos reply guys foi publicada em 2018, quando ainda existia o Twitter, pela @shrewshrew e pelo @sbarolo, 2 cientistas, apresentando os 9 tipos básicos, e caracterizando-os em 3 grupos: os bem intencionados, os que acreditam estar focados nos "problemas reais" e os mal-intencionados:

os 9 tipos de reply guy - uma tabela com 9 itens. na primeira coluna, dos bem-intencionados, temos 3 tipos: #1 The Life Coach, #4 Cookie Manster e #7 The Mansplainer. Na coluna do meio, dos dedicados aos ~problemas reais, temos: #2 Tone Police, #5 Himpathy e #8 The Prestige. E na terceira coluna, dos mal intencionados, temos: #3 The Gaslighter, #6 The Sealion e #9 Trolls, Creeps & Fools.

As definições de cada um dos 9 tipos iniciais estão na thread.

Pessoalmente, também vejo que há aspectos de gênero associados ao fenômeno dos reply guys, mas isso - e a definição do dictionary.com não discorda - não afasta a possibilidade de eles também responderem a posts que não sejam de mulheres, ou de que os reply guys sejam mulheres (e aí a definição acima não comporta).

E agora?

Chris Trottier sumarizou a situação de uma maneira que me parece prática e bem definida:

Notei que esses caras que respondem às vezes não entendem por que estão sendo apontados como reply guys. Não se preocupe, pois tenho uma dica:

Geralmente, é melhor suspender as respostas com conselhos não solicitados ou “correções” aos posts de alguém. Embora você possa ter boas intenções e achar que está sendo útil, acredite em mim quando digo que a maioria das pessoas na rede só deseja se expressar, sem receber palpites aleatórios de estranhos.

Claro, existem algumas exceções a esta regra:

1. Se o autor da postagem original está pedindo abertamente conselhos ou ajuda, então não há problema em intervir.
2. Se você construiu um bom relacionamento com o autor da postagem original e ele mostrou que está aberto a receber seus apontamentos, vá em frente e compartilhe suas idéias.

Bem, sei que algumas pessoas podem ficar tentadas a apontar que estou dando conselhos não solicitados neste momento.

Bem, você está absolutamente certo! No entanto, a principal diferença é que não estou respondendo à postagem de outra pessoa. Para realmente responder, você teria que estar reagindo ao que outra pessoa disse 🙂

Sinta-se à vontade para dar todos os palpites que desejar em seu próprio espaço. Apenas lembre-se de estar atento ao entrar no espaço de outra pessoa sem avisar.

Já Tiddy Roosevelt optou por dizer algo parecido, mas com palavras mais fortes:

Jesus Cristo, parem de tentar encontrar desculpas para os reply guys.

"talvez seja porque x". quem se importa? ninguém deveria ter que aturar uma torrente de condescendência, arrogância, ser consistentemente considerado incompetente ou ser assediado sexualmente. e também ninguém deveria ter que aturar uma multidão dizendo por que deveriam simplesmente aturar isso.

Não importa se há um motivo, o motivo é problema deles, não da pessoa que o recebe.

Finalmente, o artigo How to give advice on the internet without being an utter menace – Another angry woman também é leitura recomendada sobre o tema!

Note, entretanto, que no fim das contas o critério sobre o que você pode postar (dado pelas leis, pelos termos de uso, etc.) e o critério pelo qual as outras pessoas decidem o que querem (ou aceitam) ver nas suas timelines são duas coisas distintas – e faça suas escolhas de acordo com as reações que pretende provocar.